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Alcoolismo, síndrome do abandono.


Este texto propõe uma leitura psicológica sobre a questão das dependências, a partir de uma perspectiva psicodinâmica e compreensiva, em detrimento da abordagem psiquiátrica e descritiva. Focalizarei especialmente o alcoolismo como principal exemplo, e a alternativa de recuperação oferecida pelos programas baseados nos Doze Passos, cujo pioneiro é o Alcoólicos Anônimos. Escolho esse exemplo por se tratar de uma solução popular que busca contemplar o aspecto simbólico e religioso da compulsão e da obsessão pela substância — aspecto que interessa particularmente à discussão da psicologia complexa.


As irmandades dos Doze Passos surgiram na metade do século XX, no seio do Movimento Oxford — grupos protestantes voltados à temperança. Veiculam-se como uma “solução espiritual para um problema espiritual”. Dentre suas principais sugestões estão: a frequência às reuniões, o apadrinhamento, a prática dos doze passos e o serviço, compreendidos como práticas vitais ao processo de recuperação. Trata-se de uma alternativa amplamente difundida (estima-se que, no Brasil, Alcoólicos Anônimos contabilize quase 9 mil reuniões semanais, e Narcóticos Anônimos em torno de 5 mil), que funciona para muitas pessoas que se mantêm em contato com o grupo.


A pergunta é: como — e por que — funciona?


Primeiramente, é necessário esclarecer qual leitura a psicologia junguiana faz da questão das dependências. Muitos autores junguianos abordam o tema. Farei um recorte que contempla C. G. Jung, Marie-Louise von Franz e Luigi Zoja. Esses autores apontam que o problema das dependências está relacionado à dimensão religiosa do indivíduo.


Na troca de cartas entre Jung e Bill W., cofundador do AA, Jung associa o alcoolismo a uma necessidade espiritual não reconhecida, vivida de forma desprotegida, sugerindo que a experiência religiosa necessária seja vivida sob os cuidados do relacionamento com um coletivo. Em suas palavras:


Sua avidez por álcool era o equivalente a um nível baixo de sede de nosso ser por completude, expresso em linguagem medieval: a união com Deus. [...] A única e legítima forma de tal experiência é que isso aconteça a você em realidade, e isso só pode acontecer a você quando caminha numa trilha que o leva a uma compreensão mais alta. Você pode ser conduzido àquele alvo por um ato de graça, por meio de um contato com amigos ou através de uma alta educação da mente além dos confins do mero racionalismo. Vejo, por sua carta, que Roland H. escolheu o segundo caminho, que é, sob as circunstâncias, obviamente o melhor (JUNG, 1961).


Von Franz observa a experiência moderna com drogas como uma tentativa substitutiva da experiência do divino, já que as referências culturais vêm perdendo sua eficácia em conectar o sujeito com aquilo que necessita ser vivido como eterno, vasto, grandioso e desconhecido. São os “deuses substitutos”, que, por sua vez, têm um caráter possessivo e obsessivo, pois não trazem consigo o antídoto cultural das codificações e dogmatizações de um credo confessional. Diante da aridez da vida, o álcool e as drogas surgem como alternativas à carência de contato com elementos da própria alma:


O acesso ao inconsciente está bloqueado. Assim, existe um anseio por uma experiência religiosa extática. E isso leva ao alcoolismo ou a outras drogas (VON FRANZ, 1915/2000, p. 37).


Luigi Zoja (1992) discute o uso abusivo de drogas como uma tentativa inconsciente de iniciação — uma alternativa à ausência de ritos iniciáticos na sociedade ocidental moderna dessacralizada. Ele afirma: "A sociedade de hoje já quase não tem condições de oferecer iniciações institucionais" (ZOJA, 1992, p. 3), e como essa necessidade arquetípica clama, a psique busca alternativas disponíveis.


Mas afinal, o que significa essa necessidade religiosa?


Jung distingue os conceitos de Religião (experiência imediata com o numinoso) e de Confissão (conjunto de dogmas e ritos que se fundam na experiência religiosa original, mas que a substituem e dela mesma resguardam). Em suas palavras:


Religião é — como diz o vocábulo latino religere — uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de ‘numinoso’, isto é, uma experiência ou um efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, sendo mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito e é independente de sua vontade (JUNG, 1939/2011, v.11/1, §6).


Que aspectos da dimensão religiosa do sujeito são, então, contemplados pela programação dessas associações?


À primeira vista, observamos práticas ritualísticas: o ingresso (semelhante ao segundo nascimento, típico das iniciações religiosas), o apadrinhamento (o cuidado e o conselho de uma referência espiritual familiar), o ato da confissão (admissão da doença perante si mesmo, no primeiro passo, e perante o grupo, nas partilhas), além da vivência comunitária cotidiana (frequência às reuniões, convivência com os membros) e do pertencimento.


Quanto à participação e ao pertencimento, é preciso salientar que todo indivíduo necessita ser acolhido por uma comunidade para se sentir humano, com seus acertos e erros, libertando-se do jugo do isolamento. O isolamento psíquico é extremamente pernicioso. A participação em um grupo é proteção e alívio. Pertencer a uma comunidade em que se possa compartilhar vivências interiores, conflitos, dúvidas e angústias é um oásis para o sedento ou, como diria Jung:


Essas identidades coletivas são muletas para os paralíticos, escudo para os ansiosos, divãs para os preguiçosos, recreio para os irresponsáveis, mas também albergues para os pobres e fracos, porto protetor para os náufragos, seio da família para os órfãos, meta gloriosa e ardentemente desejada para os que se extraviaram e se decepcionaram, terra prometida para os peregrinos extenuados, rebanho e cercado seguro para as ovelhas desgarradas, e mãe que significa nutrição e crescimento (JUNG, 2016, p. 337).


No livro O Gato, Von Franz parte da interpretação de um atípico conto de fadas romeno, analisando elementos simbólicos ligados ao aspecto feminino da psique e seu movimento compensatório de redenção rumo à vida consciente. No conto, um dos reinos é governado por um imperador alcoólatra que havia perdido sua esposa. A partir desse símbolo, Von Franz faz uma observação pertinente sobre o alcoolismo enquanto síndrome do abandono:


O alcoolismo é uma famosa síndrome do abandono. Muitos casos de alcoolismo são devidos ao abandono, real ou imaginário. Todo alcoólatra dirá que não se sente amado, que vive solitário, e assim por diante — mas às vezes isso não é verdade. Às vezes há pessoas que cuidam deles, mas mesmo nesses casos é assim que se sentem. Outros são realmente abandonados, e por isso bebem. O abandono é um elemento que sempre acompanha o alcoolismo… Aí está também a razão por que a organização dos Alcoólicos Anônimos tem tanto sucesso. O acompanhamento pessoal intenso é absolutamente necessário para superar essa síndrome do abandono (VON FRANZ, 1972/2000, p. 36-37).


Participar de uma expressão religiosa coletiva ampara necessidades anímicas cuja vivência imediata e solitária seria demasiadamente arrebatadora. Além disso, o simples pertencimento e a prática da confissão são aspectos centrais na recuperação. Aqui, portanto, abordarei esse aspecto da confissão, em que encontramos paralelos com a experiência da psicoterapia.


O sujeito derrotado pela adicção, ao reconhecer sua falibilidade humana, retorna aos braços da humanidade — falho como todos os outros homens, e por eles acolhido. Como bem coloca Jung:


Não resta a menor dúvida de que todas as iniciações e todos os cultos e mistérios da antiguidade conheciam essa verdade. Prova-o o adágio dos mistérios antigos: ‘Solta o que tens, e serás acolhido...’ (JUNG, 1929/2011, v.16/1, §133).


A psicoterapia conhece bem o valor de uma confissão mais ou menos completa de nossas angústias. Jung aponta a confissão como a primeira etapa do processo analítico, cuja raiz remonta às práticas religiosas:


As origens de qualquer tratamento analítico da alma estão no modelo do Sacramento da Confissão, não por uma relação causal, mas por uma conexão pela raiz, irracional e psíquica (JUNG, 1929/2011, v.16/1 §123).


Uma vez confessado o segredo, o sujeito — aliviado — pode se sentir devolvido à comunidade humana, libertando-se do peso do exílio moral e da culpa.


Ao tomar consciência da minha sombra, consigo lembrar-me de novo de que sou um ser humano como os demais (JUNG, 1929/2011, v.16/1, §134).


Eis, nos nossos silêncios, a raiz de nossa doença — sobretudo quando esses silêncios são omitidos de nós mesmos.


Retornando ao conceito de “religião”, cuja raiz está em religare, ou seja, na conexão com o divino, com aquilo que é absoluto em nós e que nos evoca fidelidade, podemos reconhecer nos Doze Passos a indicação salutar de que o praticante estabeleça um relacionamento com um “poder superior” — seja este quem for ou como for. Em leitura psicológica, trata-se do relacionamento com uma instância psíquica íntima e poderosa, com caráter de alteridade, da qual Deus é o representante simbólico. O relacionamento legítimo com essa instância é baseado na fé — pistis, fidelidade. Esse é também um aspecto que participa da prática psicoterapêutica e que aprofundarei em outra ocasião.

 
 
 

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Angélica Gadelha - Psicóloga

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