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As Qualidades Terapêuticas do Fazer Artístico — A Jornada de Adelina.




No processo psicoterápico, buscamos confrontar-nos, entender nossas contradições, dar nome às nossas emoções e desejos, tomar posse das nossas tendências aparentemente autônomas. Desejamos ser donos da nossa própria casa e do nosso destino — é por isso que estamos ali, mergulhando no desconhecido de nós mesmos, o que, claro, não surpreende ser desconfortável e gerar certa aflição.


O conceito de inconsciente, em C.G. Jung, é muito mais adjetivo do que substantivo: trata-se daquilo que não se sabe, o que não está sob as vistas da consciência. Mas que é nosso, e continua atuando — nem sempre em silêncio —, e sempre com consequências que nós, mesmo não nos sentindo autores de suas peripécias, precisamos arcar.


E por isso falamos. Falamos e falamos, enquanto o analista atento ressalta certas confusões, pergunta certas incertezas, aponta inconsistências, estimula novas palavras. Seria simples se as palavras contemplassem todas as nossas demandas expressivas. Porém, como tudo que é diverso e complexo, as palavras não são suficientes para abarcar todo o seu conteúdo.


E é por isso que a arte existe — e sempre existiu — enquanto linguagem.


Nas abordagens psicodinâmicas, podemos destacar a potência expressiva das atividades artísticas, cujo produto visual entrega mensagens ao sujeito sobre sua vida simbólica. A produção de imagens, no contexto psicoterápico, proporciona acesso ao mundo interior, sobretudo quando as comunicações verbais encontram suas limitações.


Aliada à psicoterapia, uma vez elaborada a fantasia na produção visual, o indivíduo despotencializa figuras e ideias ameaçadoras, podendo enfim se desidentificar delas. Segue-se, então, um processo de interpretação intelectual e emocional. Após essa primeira etapa de elaboração criativa, estamos prontos para a etapa da compreensão.


Essa seria a regra para o tratamento das imagens em casos neuróticos. Porém, a psiquiatra Nise da Silveira observou que, no caso dos psicóticos, essa etapa de compreensão torna-se difícil, pois as imagens — vindas de estratos profundos do inconsciente — possuem uma carga energética tão intensa que dificultam sua apreensão pelo processo interpretativo.


Nesses casos, Nise observou que a produção artística se apresentou não apenas como ferramenta esclarecedora dos processos internos, mas também como agente terapêutico em si. Além de ser veículo de contato com a realidade, a objetivação da fantasia despotencializa sua carga tremenda:


"O espantoso foi a verificação de que o ato de pintar podia adquirir por si mesmo qualidades terapêuticas. [...] O tremendum é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência originam e seus efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o terror a distância" (SILVEIRA, 2015, p.142/146).


Nise da Silveira, personalidade de extrema importância para a reforma psiquiátrica brasileira e para a propagação de práticas terapêuticas não violentas, começou sua trajetória na psiquiatria ainda jovem, fformando-se em Medicina em 1926 e iniciando seu trabalho em 1932, no Hospital Nacional de Alienados do Rio de Janeiro, como médica residente. Em 1936, foi presa por possuir em seu quarto um livro comunista. A experiência da prisão marcou sua postura ética diante dos tratamentos médicos da época, que haviam “evoluído” nas suas técnicas científicas durante esse período de prisão. Ao retornar ao trabalho clínico, em 1944, no Hospital do Engenho de Dentro, Nise se deparou com procedimentos terapêuticos “modernos” aplicados nos pacientes — métodos que ela reconheceu como semelhantes aos que havia presenciado como tortura na prisão. Imediatamente confrontou tais práticas, denunciando-as como violentas e ineficazes, além de se recusar a executá-las.


Esse posicionamento foi o ponto de partida para o grande marco de sua trajetória. Em 1946, Nise iniciou seu trabalho no Setor de Terapêutica Ocupacional (STOR) do hospital, em parceria com o artista Almir Mavignier. O que antes era um setor marginalizado, com atividades monótonas, repetitivas e mecanizadas, transformou-se em um espaço dedicado a atividades terapêuticas, organizadas entre laborais, expressivas, recreativas e culturais (MELO, 2001). A ênfase do trabalho, no entanto, recaía sobre as atividades expressivas, onde Nise e Mavignier perceberam que a produção espontânea dos pacientes revelava uma vida simbólica ativa.


É o caso de Adelina. Apresento aqui um exemplo de como a atividade criativa possibilitou tanto o desbravamento dos processos internos que levaram ao adoecimento quanto a despotencialização das ameaçadoras fantasias que alimentavam seu sofrimento.


Adelina chegou ao hospital em 1957, após, em surto, estrangular o gato, animal querido por ela e por sua família. Em 1946, passou a frequentar o Setor de Terapêutica Ocupacional, onde produziu suas primeiras pinturas: “Gato no leito” e “Gata bailarina”. Foram nove nos até a sua primeira comunicação.


Nas figuras do gato, Adelina pinta atributos do feminino: a "Gata no leito" representava a maternidade; a "Gata bailarina" evocava a liberdade de movimento, a liberdade instintiva. Essas representações ganharam sentido conforme sua história e processo de adoecimento vieram à tona. Ao longo de suas composições visuais, Adelina repetia temas como o gato, a mulher, a flor, a mãe, a virgem e o casal. Esses elementos surgiam em diferentes configurações — ora combinados, ora isolados — e se reconfiguravam ao longo das décadas, à medida que o conflito interno encontrava novas formas de elaboração. Suas imagens testemunhavam as transformações silenciosas e profundas que ocorriam em sua vida simbólica.


Nise da Silveira destacou, em especial, as pinturas de Adelina em que a mulher e a flor se fundem, relacionando essas imagens ao mito de Dafne. Dafne, ninfa que, para escapar de uma situação erótica, apela à mãe e se transforma em loureiro. O paralelo com a história de Adelina é claro: seu adoecimento envolvia a repressão, por parte da mãe, do desenvolvimento natural dos instintos. E, da mesma forma que seus instintos foram sufocados, Adelina sufoca o gato.


Em outra publicação, mencionei o livro “O Gato”, de Marie-Louise von Franz, e aqui retomo o tema, ampliando a reflexão sobre o simbolismo do animal. Von Franz reúne uma série de referências históricas, culturais e religiosas que exemplificam a ambivalência do gato enquanto figura simbólica. No Egito, o gato era sagrado, associado às deusas Ísis e Bastet, e vinculado à fertilidade, festas, música, ritos sexuais e à sensualidade. Trazia proteção noturna e era sinal de bons partos. Por outro lado, a deusa Hécate, representação do aspecto sombrio do feminino, também se manifestava sob a forma de um gato, refletindo seu caráter malévolo, de mãe terrível, capaz de levar à loucura e à obsessão.


Como destaca Von Franz, “o gato está estreitamento ligado à consciência e à todos os processos criativos” (Von Franz, 2000, p.71). Sua imagem oscila entre a bondade e a maldade: a gata branca, com efeito curativo; o gato preto, que envenena a mente e infecta o corpo. Positivamente, as nove vidas são associadas à imortalidade; negativamente, sugerem um ciclo vicioso. Sua independência e liberdade são associadas tanto à virgem quanto à bruxa. Nise sintetiza de maneira primorosa:


"A gata é o inimigo que representa a natureza instintiva, encarnação por excelência dos instintos femininos. Com efeito, a gata reúne em si graça sedutora, lascívia, devotamento materno e um núcleo de irredutível selvageria, atributos essenciais da feminilidade"

(SILVEIRA, 2022, p. 182).


Portanto, o gesto de estrangular o gato — de suprimir o que é animal — reflete, de forma literal, o sufocamento do desenvolvimento instintivo natural vivido por Adelina.


Assim como Dafne no mito, Adelina fugiu para o "reino das mães". Entre 1948 e 1950, modelou no barro figuras de Grandes Mães. Inicialmente ameaçadoras e assombrosas, essas figuras foram, aos poucos, assumindo um caráter mais amoroso - do peito da escultura, abre-se um coração. As Grandes Mães, como mostram diversas tradições culturais, representam tanto a fertilidade quanto a destruição — são ambivalentes, capazes de gerar e de devorar. Essa dualidade aparece em figuras como Ísis, Gaia, Vênus, Parvati, Kali, Cibele, Ishtar, Hécate, Astarte e Afrodite. Como explica Esther Harding, em “Mistérios da Mulher”:


“Na natureza, o princípio feminino, ou como o homem ingênuo diria, a deusa feminina, mostra-se como uma força cega, fecunda e cruel, criativa, acariciadora e destrutiva”

(HARDING, 2007, p.64).


Através da modelagem, Adelina travou relação com a dupla natureza da figura coletiva da mãe, seu aspecto devorador e seu aspecto amoroso. Ao dar forma a essas imagens, despotencializou o poder possessivo e ameaçador que elas exerciam sobre sua psique. Com o passar do tempo, tornou-se menos agressiva e se relacionando melhor. Aos poucos, temas vegetais começaram a surgir em suas pinturas, dissociados da figura da mulher. A partir de 1962, Adelina começou a representar cenas da realidade.


Nos anos 1970, desenvolveu uma série de imagens em torno de cadeiras: uma mulher sentada ao lado de uma cadeira vazia; um homem ao lado de uma cadeira vazia; até chegar, enfim, à imagem de um casal de noivos sentados lado a lado. Na mesma década, surgem também as representações da Virgem Maria, a deusa que estirpa os aspectos sombrios e ameaçadores: a "mãe bondosa".


Suas imagens, ao longo dos anos, refletiram os sutis movimentos de transformação interior, ainda que não elaborados em palavras. Ao lado disso, foi-se desvelando sua própria história, que só se tornaria conhecida pela equipe na década de 1960. A possibilidade de representar suas fantasias despotencializou o poder possessivo dessas imagens, tornando a realidade, aos poucos, mais acessível.

 
 
 

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Angélica Gadelha - Psicóloga

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